quinta-feira, abril 14

Contra(-)tempo

O medo de inexistir a perseguia entre lacunas desmemoriadas. Vazios a assomava desde o despertar da cafeína matinal até a entrega exausta a uma insônia dissolvida em camomila. Mais uma alta madrugada, pálpebras insistentemente abertas, olhos vasculham um passado num corpo encolhido que busca aconchego num futuro. Mas tudo que ela tem é esse nada que é, descrente em respostas ou sentido pra uma vida pretérita-imperfeita num subjuntivo incisivo que a martiriza à cada derramamento de sol em sua janela, a cada meia-palavra, a cada vidro estilhaçado, susto ou suspiro. Quando criança encarava o espelho: era pura potência. Anos depois a imagem era um porvir desesperançoso. Na velhice abdicou-se de rituais com refletores: a senhora que uma vez a olhou de volta, com olhos grandes de incompreensão e piedade, não poderia mais se fazer-se visível. Sua própria identidade fora dissolvida. Não mais se reconhecia. Nada ali era seu, nada a pertencia além da única e certa espera inevitável de não mais despertar, que poderia fim às essas miseráveis migalhas de memória vis que a vida tramou e o tempo se encarregou, de torná-las em penitências noturnas inconfessáveis. Cada ontem era um misto de angústia e alívio: o tempo era deveras devastador e, pra seu consolo, também escasso. Aprendeu a arte de perder. De não estar. De não ser. Respirava fundo, fechava os olhos. "Não sou nada, não posso ser nada e não tenho em mim nenhum sonho." Ria com essa idéia: os poetas da sua juventude se agarraram em algum feixe de luz de sua memória, mas até mesmo estes o tempo, de todos, e a vida, só dela, atiravam prum canto escuro e quase inviolável em forma de baú reminiscente de desespero e miséria. Permanecia com os olhos fechados durante horas, esperando a morte e, paradoxalmente, sentia-se viva.

Um comentário:

  1. Que profundo isso Emi. Profundo e a linguagem é bem poética. Uma narrativa de tirar a gente de dentro de si e nos colocar no espelho, olhando-nos exaustivamente, o corpo com suas marcas temporais, e também olhar de dentro, fazendo um balanço da vida. Gostei demais das suas imagens, de como vc organizou-as em uma narrativa de memória.

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